terça-feira, 27 de julho de 2010

"EU ETIQUETA"

"Em minha calça está grudado um nome
que não é o meu de batismo ou cartório,
um nome ... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nessa vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
que nunca experimentei
mas são comunicados aos meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, de abuso, reincidências,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio
itinerante, escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo.
Ser pensante sentinte e solitário
com outros seres diversos e consistentes
de sua humana, invencível condição.

Agora sou anúncio
ora vulgar, ora bizarro
em língua nacional ou em qualquer
língua [qualquer principalmente].
E nisso me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou – vê lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares, festas, praias, pérgulas,
piscinas,
bem à vista exibo esta etiqueta global
no corpo que desiste de ser
veste e sandálias de uma essência tão
viva, independente, que moda ou
suborno algum compromete.

Onde terei jogado fora meu gosto e
capacidade de escolher, minhas
idiossincrasias tão pessoais, tão minhas
que no rosto se espelhavam a cada gesto,
cada olhar, cada vinco da roupa sou
gravado de forma universal, saio da
estamparia, não da casa, da vitrine me
tiram, recolocam, objeto pulsante, mas
objeto que se oferece como signo de
outros objetos estáticos tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso de
ser não eu, mas artigo industrial, peço
que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu novo nome é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente."



Carlos Drummond de Andrade

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